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Por que a psicanálise, ainda? Por Mariana Toledo

  • Foto do escritor: Mariana Toledo
    Mariana Toledo
  • 21 de dez. de 2023
  • 5 min de leitura

Atualizado: 30 de nov. de 2024

O que faz, afinal, um psicanalista? Qual é o propósito de uma análise? Qual a diferença entre um processo analítico e as psicoterapias? Todo psicanalista ou estudante de psicanálise já escutou ao menos uma dessas perguntas de pessoas leigas no assunto – de pacientes a amigos e familiares. Normalmente, a resposta mais sucinta para essas perguntas que – mal sabem os curiosos – abarcam uma profunda complexidade, é que a psicanálise trabalha com “o Inconsciente”. Costuma-se seguir uma rápida explicação do que seria esse conceito teórico postulado por Freud no desenvolvimento de sua metapsicologia e em seus estudos sobre o aparelho  psíquico. Mas em seu percurso de formação (que nunca se encerra), todo psicanalista envereda pela laboriosa construção de uma compreensão e assimilação daquilo que constitui as bases do trabalho analítico, os caminhos de uma análise e a função do psicanalista.

O próprio conceito de “inconsciente”, enquanto instância psíquica e também estado de alguns conteúdos psíquicos, abrange inúmeras nuances e desdobramentos, principalmente porque Freud foi desenvolvendo sua teoria ao longo de várias décadas, reformulando e atualizando sua metapsicologia constantemente, conforme seus debates teóricos e sua experiência clínica foram caminhando e se modificando. Nesse percurso, um elemento que sempre permaneceu fundamental – sendo também um dos mais complexos e controversos – ao longo do desenvolvimento da teoria freudiana sobre o funcionamento do aparelho psíquico é a noção de “pulsão”. Para Freud, a pulsão, “representante psíquico de uma fonte endossomática de estímulos que não para de fluir”, (Freud, 1905, p. 66) constitui uma espécie de pedra angular do universo psíquico humano e dos conflitos que o sujeito enfrenta em sua existência na coletividade: a busca constante do aparelho psíquico por satisfação através de descargas dessa energia vital, bem como sua concomitante tentativa de barrá-las em prol das exigências da cultura, essencialmente ocasionam os sintomas e mecanismos de defesa que acometem os sujeitos que chegam aos consultórios dos psicanalistas.

Retomando, assim, as perguntas iniciais à luz da importância desse conceito na metapsicologia freudiana, é possível traçarmos algumas reflexões acerca da prática clínica. Quem procura um psicanalista costuma chegar até nós com alguma queixa que, normalmente, nesse primeiro momento, diz respeito a questões mais conscientes e revelam algum sofrimento ou conflito. Outras pessoas alegam desejar adquirir maior autoconhecimento, talvez intuindo que uma análise pode revelar-lhes aspectos de si mesmas antes desconhecidos (ainda que sua finalidade não seja proporcionar mero “autoconhecimento”, de fato). Outros chegam familiarizados com a prática e compreendem que ali, naquele espaço, o inconsciente será protagonista. E o que faz um psicanalista? A priori, escuta. Mas não á uma escuta qualquer: escuta aquilo que se revela nas nuances. Desvia a atenção do conteúdo manifesto para identificar aquilo que transborda por entre as brechas do discurso; aquilo que pulsa. O analisando comparece ao setting revelando aspectos de sua economia pulsional através de suas ações, da relação transferencial que estabelece com o analista, da maneira como lida com o pagamento das sessões, dos atos falhos, chistes e associações livres no discurso, dos sonhos narrados em sessão.

O analista escuta e faz algo daquilo que é escutado. Com suas pontuações, busca promover associações do analisando que o aproximem de seu conteúdo inconsciente, abrindo caminhos para novas possibilidades de satisfação. As formações de compromisso estabelecidas durante a fase de constituição do sujeito podem, finalmente, ser colocadas em xeque, já que antes poderiam parecer absolutamente necessárias à sobrevivência do Eu. Assim, o analista escuta para além da novela da vida do analisando, com seus personagens diversos, mocinhos e vilões, culpados e inocentes, certo e errado. Busca pistas do universo inconsciente nas entrelinhas, convidando o analisando a olhar para (e escutar) sua própria história a partir de uma perspectiva inédita, trazendo à consciência o conteúdo submerso que tanto lhe causa sofrimento. Em suma, essa é a premissa freudiana, posteriormente ampliada e complementada por inúmeros outros teóricos (inclusive para uma reflexão acerca dos casos em que o paciente não se enquadrava na neurose clássica tomada como modelo para o desenvolvimento do método freudiano).

Com o trabalho conjunto da dupla analista-analisando, uma análise caminha em direção ao reconhecimento de modos de satisfação já obsoletos, bem como de possíveis compulsões à repetição que se instauram na tentativa de decifrar determinadas vivências que não puderam se inscrever na linguagem simbólica do sujeito. Profundos sentimentos de culpa, autocomiseração, autopunição, estados depressivos, estados maníacos ou de excitação desmedida, compulsões alimentares, adicções, anorexias, apatia, crises de angústia, medos paralisantes, fobias, dificuldades de se relacionar, incapacidade de tomar decisões, adoecimento do corpo... A lista das queixas que costumamos receber nos consultórios pode nunca ter fim, mas todos esses fenômenos repousam sobre a dinâmica pulsional, cuja natureza é inerentemente contraditória entre si: fixam-se em objetos específicos, voltam-se contra o sujeito, voltam-se contra o mundo externo, transformam-se em energia hiperinvestida no próprio eu, desembocam no corpo...? Assim, uma análise nunca se reduz à queixa inicial apresentada pelo sujeito; a cada sessão, a cada novo insight, a cada passo em uma direção que aquele psiquismo nunca havia antes explorado, revelam-se uma nova imbricação, um novo percurso nocivo, ou uma nova possibilidade.

Uma análise está sempre disposta – e pretendendo – ir além daquilo que é conhecido, ou até mesmo esperado, conscientemente, pelo analisando, bem como daquilo que as normas sociais exigem dele, e é justamente isso que a distingue. Seu intuito não é oferecer conselhos e orientações sobre a melhor forma de viver sua vida a partir de um saber detido pelo psicanalista, tampouco visa-se adaptá-lo às normas e expectativas do mundo externo em detrimento de sua autonomia, já que é justamente esse movimento normativo que potencializa seu sofrimento e limita suas formas de se relacionar com o outro e o mundo. Para Freud, não há escapatória para a condição humana: nossa existência em coletividade é arraigada no conflito. Nossos desejos e anseios mais primordiais, se sempre satisfeitos, minariam nossa capacidade de sustentar a alteridade, fazer vínculos e viver em coletividade; as exigências da cultura, entretanto, se sempre satisfeitas em detrimento dos desejos do sujeito, impossibilitariam os modos particulares de prazer, satisfação e realização. A psicanálise é uma prática clínica que possibilita que cada um amplie seu leque pessoal de saídas para sustentar-se nesse eterno campo de batalha entre as demandas pulsionais e as demandas do mundo que se habita, da melhor maneira possível para cada singularidade.

 

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Referências bibliográficas:

 

FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a sexualidade. In: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

_________  (1920) Além do princípio do prazer. In: História de uma neurose infantil (“O Homem dos Lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

_________ (1914) Introdução ao narcisismo. In: Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos de 1914-1916. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

_________ (1930) O mal-estar na civilização. In: O Mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

_________ (1914) Os instintos e seus destinos. In: Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos de 1914-1916. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

 
 
 

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